quarta-feira, 2 de maio de 2012

O que podemos esperar do futuro senão o passado?


Ao assistir ao documentário de Jorge Costa, “Os Donos de Portugal”, recentemente lançado na noite de 23 para 24 de Abril, fiquei com a impressão que a análise que seria ali produzida seria ao mesmo tempo histórica, mas também projectiva.  O país não tem conhecido grande alteração naquilo a que os autores do trabalho transposto para documentário, intitulam de “donos”. Podemos ver que existem umas incursões aqui ou ali por vias menos ortodoxas, mas, fundamentalmente, este país está conhecidamente nas mãos de um punhado de famílias que não tiveram o tratamento devido quando se deu o 25 de Abril, e muito menos depois, quando os governos resolveram covardemente reprivatizar indemnizando principescamente os antigos proprietários.

A conivência, mais do que coexistência, entre poder político e o seu verdadeiro motor que é o poder económico conseguiu surpreender um dia 1º de Maio que se previa pouco agitado mas razoavelmente participado. E surpreendeu pela razão mais estranha que poderia ser imaginada por alguém de bom senso. Este país comemorou as conquistas de Maio fazendo compras. Ou melhor, açambarcando e pilhando oficialmente prateleiras de uma superfície comercial que resolveu boicotar não só os direitos dos seus próprios trabalhadores como convocar uma maioria silenciosa para um plano de poupança que abarcava todos aqueles que tivessem dinheiro suficiente para fazer compras de vários meses, dando-lhes a possibilidade de o fazerem por metade do seu valor comercial. O plano resultou num êxito estrondoso e as atenções foram desviadas das manifestações normais deste dia comemorativo do dia do trabalhador, para a comemoração planeada do dia do consumidor.

Aparentemente a importância deste acontecimento parece ser diminuta. Uma questão de mera fiscalização resolve as eventuais dúvidas que possam surgir. Contudo não se fiscalizam processos de intenções e manipulação deliberada de necessidades de consumo.

Já li relatos hoje que alegavam que os funcionários da superfície que causou toda esta celeuma estavam a trabalhar tranquilos e mesmo sorridentes. O que eu acredito. Uma vez, há poucas semanas, aqui bem perto vi um responsável a desancar numa funcionária que cumpria as suas tarefas, mas que não correspondia exactamente ao que estava na mente retorcida do responsável que, elaboração minha, deve imaginar o que anda por baio das saias e não come há muito tempo. A moça estava ao nível mais baixo das prateleiras do linear e o chefe estava em pé de dedo em riste e de voz firme. Para os clientes nunca vi nada que não fosse um sorriso. Toda a gente sabe que as gentes do norte sorriem, são bem-dispostas por natureza e comunicativas mesmo quando são instigadas a sorrir familiarmente para os clientes normais. Não falo das bestas acéfalas que correm à cenoura dos cinquenta por cento, sendo que nestes não incluo aqueles que contam o vencimento até ao último cêntimo e que viram nesta oportunidade uma forma de pouparem alguns euros, mesmo sabendo que comprariam coisas que necessitariam e outras que nem por isso.
O que eu acho que deveria ter sido feito, até porque acredito que o poder político, tal como digo acima, estava conhecedor e conivente com esta acção que transformou trabalhadores em perdigueiros de saldos, seria uma sondagem, não à boca da urna, mas à boca do supermercado para aferir, no acto da compra, em quem estariam os portugueses a pensar votar para as próximas eleições. Não ando longe de uma quase certa verdade se disser que a esmagadora maioria dos consumidores intensivos do insólito 1º de Maio, teria como intenção de voto os partidos de Coelho e de Portas.

Lembro-me de uma vez, enquanto criança ainda (há pouco tempo, portanto) visitar o santuário de Fátima. Não por devoção que sou ateu, mas porque acompanhava familiares que entre as drogas e a religião distorcida que sempre praticaram, preferiram a religião. Uma das coisas que me chamou a atenção naquela visita foi a forma como as pessoas cumpriam promessas queimando velas que eram compradas, derretidas e depois novamente ressuscitadas para o mundo da promessa de outro qualquer. Foi a minha primeira lição de capitalismo. Mantive-me ateu como era desde os seis anos de idade, desde aa primeira vez que pisei uma igreja após o baptismo ao qual não podia fugir por dele não possuir consciência. E começaram as minhas raízes profundamente anticapitalistas. Ainda hoje chamo ao santuário o supermercado de Fátima.
Esta estória vem a propósito da fé. O capitalismo é um sistema de fé. Temos a fé que um dia estaremos naquele um porcento que vislumbra o que é ser milionário e podemos olhar de cima para baixo os falhados, os mal sucedidos e preguiçosos da vida. O nosso sucesso ou o nosso extremo fracasso começa precisamente no mesmo acto. Quando decidimos que aqueles 50% são realmente importantes para nós. Mais importantes que perceber porque raio se comemora, no dia em que nos querem enfiar a cabeça nas prateleiras lineares a chafurdar no jogo das supostas necessidades, aquilo a que chamam dia do “trabalhador”.

Todos sabemos que o imperialismo financeiro a que se elevou o capitalismo há muito transformou ou travestiu os trabalhadores de colaboradores. Um termo tenebroso que me lembra os bufos do fascismo. Mas são colaboradores e não existe um dia do colaborador. E se os trabalhadores lutaram por condições de trabalho humanas, os colaboradores estão submetidos à doutrina mediática de que o sacrifício funciona como a vela de Fátima. Se não fizer a promessa e arder a vela,  nunca ela surgirá de novo para que possa ser readquirida e fruto de nova promessa. E é essa reflexão que me leva ao entendimento de que a resposta à sondagem à boca do supermercado seria definitivamente aproximada da composição política actual. A mesma abstenção. O mesmo nulo. As mesmas intenções de votos expressos porque não há alternativa. Este governo é também ele mesmo um desconto de cinquenta porcento, não no seu valor nominativo em termos de custo, mas no seu valor quantitativo em termos de eficácia e qualidade de produção de soluções e alternativas. Temos aquilo que era esperado desta gente. Só pensa o contrário quem não está nas realidades da vida. Quem já faleceu, ou quem come à mesa com eles.

O que se prova com o dia de ontem é que o sistema político, ainda que muito rudimentar, evoluiu muito mais depressa que o seu povo que apenas sabe funcionar debaixo do chapéu-de-chuva de regimes autoritários. A maior parte dos eleitores, não dos abstencionistas, mas daqueles que efectivamente escolhem votar num partido, está perfeitamente convicto e tem o desejo mais íntimo de não escolher coisa nenhuma. E fica em casa à espera dos resultados e vibra com victórias que nunca são as suas próprias. Prova-se que o português, como todos os outros povos ocidentais, não está preparado para tomar poder em suas mãos. Para assumir uma ideologia, para intervir na sociedade, pensando, criando agindo. Não há estrutura moral para uma construção social baseada na moral, porque esta é um conceito subvertido, mutilado. O serviço da pátria é tão estranho que não tem qualquer sentido. Embora a maioria seja patriota. Portugal é um grande país. Pena estar repleto de portugueses. E pena que estes tenham já abdicado de o ser em nome de prisões de dívidas que ninguém questiona. Os mesmos mercados que decidem estas promoções megalómanas, são os que colocam a nossa própria cabeça enquanto país num saldo de mais de cinquenta porcento. Empresas privadas, com interesses privados juram a pés juntos que somos péssimos pagadores de dinheiros que vieram para satisfazer a gula predatória dos bancos. Habitação, automóvel, consumo, férias, estudos. Tudo crédito sobre crédito que se haverá de pagar um dia, quando se estiver morto. Para o português quando mais tarde se pagar, melhor. para pagar e morrer quanto mais tarde melhor a não ser que esteja em promoção, em saldo liquidação total, e sobretudo se estiver no dia de um trabalhador que já não existe. Da próxima vez que trabalharmos 16 horas já será como colaboradores, aqueles que são símbolo de sucesso e que exibem meses depois, triunfantes, os 5000 rolos de papel higiénico que compraram neste dia de promoção, e onde será escrita a próxima revisão constitucional.