sábado, 14 de setembro de 2013

sei

sei, que qualquer dia a partir de há trinta e oito anos atrás, é tarde. é tarde para partir ou rasgar. ou verter. ou regressar. é tarde. sei, que há na espera a lonjura de todas as ânsias a cavalgar em conjunto, e que o tempo galopa ao nosso prazer e jaz num gozo cruel ante todo o sofrimento que podemos ter. sei que qualquer dia é sempre um dia a mais. qualquer dia é um corpo prometido à decomposição e uma mente já entregue: rendida. que bom fora que um rio me houvesse levado há trinta e oito anos, em sangue e poucas lágrimas. ou que o esperma nem sequer houvera o desplante de fingir-se amor e entrar dentro da casa provisória que acolhe toda a vida em potência. uma casa ocupada. assaltada como em dias de revolução ao contrário. sabemos como ninguém que amor é aquilo que chamamos às coisas podres. é aquilo que fazemos quando a verdade nos falha. quando já não podemos conter o riso histérico por nada. uma falha sísmica entre a ordem e o caos. é tarde para que nos digam "o que andas a fazer" e nós "nada". se o sentido é não o haver. como a natureza a bolsar imperfeições e a crescer de qualidades cantadas. a natureza. é tarde. é um engano, somente. um engano.

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sei, que o que sei me foi trazido nas asas de um pássaro morto ao colo de um caçador de gente. vestido de preto. sei que estava vestido de preto na noite e como a noite. sei que cintilavam nos seus olhos pirilampos de angústias. um só tiro. apenas um retiro. apenas uma forma bélica, uma bala trespassada e a respiração interrompida. um zunido mecânico e pontiagudo. um vértice sobre as nuvens a pairar sobre a linha do horizonte. o pássaro morto. negro e rubro. asas e sangue de carne, seco. seco, o sangue. frias as carnes. e a bala na mão. os olhos no chão. todo o conhecimento. tudo o que sei. erguer-se-á um qualquer túmulo ou far-se-ão cinzas dos restos. quando os restos são o caçador e não a caça. quando os restos estão para lá da mão que agarra e dos olhos que parecem esconder todas as noites. a cabeça de um homem é uma síntese de todas as noites do mundo. e chove. está um verão a chegar ao fim e relampeja por cima de nós. a luz intermitente que incendeia a bala de quando em quando e assusta as anciãs que desconhecem as letras. sei, que as velhas foram caça. um dia foram caça. não caíram como pássaros moles abocanhados por perdigueiros obedientes. as velhas, foram elas mesmas, perdigueiros obedientes, e em simultâneo a caçada. sei que foram tempos. outras caças, tantos tiros. tantas quedas abruptas no chão seco ou molhado, tanto fazia se havia se havia chão onde cair. talvez o pássaro de sangue encrostado fosse ontem a morrer sobre hoje. talvez o caçador um bigode desfeito em gravata. talvez um orador em palestra infindável sobre o estado das armas de caça. talvez somente um gatilho.

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sei. um jogo de labirintos impenetráveis. a urgência na forma de um sopro sobre um corpo esquálido. a fortuna e a miséria a conviver no mesmo lado. a servidão das horas em redemoinhos. sem solução à vista. um ser só e sem membros. sei que os seres sós são desprovidos de bem mais do que membros. são desprovidos dos próprios seres sós. clamam por desafios. fazem de toda a insensatez um novelo de desafios. conceitos vagos que não amortecem nenhuma queda.

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a solidão é o circuito da mente. o estado natural das coisas quando crescemos, naturalmente dotados de um formato do eu que não suporta senão o seu estado de constante exaltação. fazem-nos exaltação através da usurpação de tudo quanto temos em nós que nos faça "plural". e por isso a queda. todo o ser singular, no desespero inconcebível e imperceptível do seu abismo, é um ser em queda. por isso, uma razão entorpecida em químicos de fórmulas complexas faz do sono a cama de espinhos que se nos aparenta seda. por isso, nos encantamos com todas as coisas que anulam em nós a capacidade de encantamento com todas as pessoas. por isso, nos encantamos com as pessoas que fazem do nosso caminho um funesto desfilar de sorrisos doentios. incontroláveis. furiosos. sendo a capa de todas as mutilações, colorida e vibrante. caleidoscópica. no interior, apenas esta densidade negra de nós mesmos, crescendo para a solidão com ou sem a consciência de que toda a exaltação sendo vã, é caminho de sentido único. aos poucos somos as peças electrónicas obsoletas das quais nos desfazemos. sei. ou cuido saber.

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sei. que um acordar diferente pode ser ao mesmo tempo um adormecer de tanta gente, como que um universo de clorofórmio aspergido sobre as cabeças que se vêem como formigas tontas e sem destino, desgarradas dos seus pares e do seu propósito. a sobrevivência veste-se nesta manhã, de mentira como palavras estruturadas em relatórios infindáveis. uma contagem de mortes. um desprezo de vidas. uma estória para contar a todos os dias que se seguem depois do dia em que se temia não haver mais dias para contar. cada um morre primeiro dentro de si mesmo. depois então, num fósforo de tempo ou em passada lenta, dissolve-se na evidencia de que o fumo jamais teve um fogo ateado. os contadores de estórias escrevem-nas, polidas e escorreitas na história das coisas e ficam lá, quase que para sempre, pois o sempre é a parcela que apenas temos em nós como tumor do nosso pensamento, ou pior, do nosso desejo. ficam lá até a lógica dessas coisas ser maior que a sua medida nos relatórios, mas sempre menor que a dimensão do comportamento mesmerizado dos corpos. hoje é dia de comprar qualquer coisa novo. hoje é, afinal, o dia da obsolescência das ideias. o dia em que a morte se torna tão banal que a contagem dos corpos nos faz esquecer que nas escolhas, tantas vezes, povos inteiros se suicidam e incendeiam os irmãos. espetam-lhes as estacas. fundem-nos com a sua dimensão menor de leitores de relatórios. de eleitores do segredo que nunca os consumirá. será branco, como o nevoeiro cerrado sobre o rio das trevas. será essa passada a compasso, como marcha militar onde a vida se resguarda, sobrevivente, em todos os critérios da sua extinção.

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sei cantar amanhãs quando os dias não medram porque plantaram pedras em cima da semente dos dias. e pouco mais sobra que linhas escritas sobre a espuma regurgitada pelos aviões que acasalam com os pássaros. amanhã nem sequer é um dia a sério. amanhã é uma ideia vestida de tantas coisas como a crença que se veste de seres luminosos e milagres. olhar o amanhã no respirar ansioso por mudanças, por que tudo seja a diferença de nós somados a todas as circunstâncias, diminuídos de todas as limitações. uma luz que nos trespassa quando apontamos de forma acusadora o dedo aos astros, os interlocutores que conhecemos do nosso pretexto para irmos ficando. ficando a apodrecer num tempo esgotado desde que se anunciou a fatalidade. é uma criança. não, é um cadáver por vir. é a flor de todas as intempéries.

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sei. potenciais cadáveres a cada instante. os que empurram o mundo com a barriga, e sorriem com cara de vómito ressequido. como se o mundo fosse um misto de quintal e de palco. vaidades tais que, sei, serão do mesmo fim. um dia, perdendo a compostura que aprendemos nas mais diversas morais, faremos dessa barriga um jogo de tripas sem recomposição possível. no fundo, tornaremos as tripas mais parecidas com a mente retorcida dos fanfarrões, e brincaremos com elas à justiça feita sobre os que nunca puderam sequer espreitar o conceito.

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não me escondo da sombra do que sobra do mistério. como a vida a escoar em ralo lasso por entre as intempéries da ideia. talvez o mistério seja apenas um resíduo inerte e inócuo da minha passagem, diáfana, sem um propósito mas com um caminho sulcado sobre pedras de toque dos sonhos. ora construídos, ora dilacerados. nunca cheguei ou chegarei a ser aquele que se destaca no silêncio dos dias, e no quase infinito ruído de todas as outras sombras. as outras sombras que, disfarçadas de luz, me tentam anular.

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não é possível anular o que não é.
não sei.

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