quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A ARCA DO DESPERTAR SEM INOCÊNCIA

Somos no despertar dióspiros amarfanhados
Por uma noite que é uma mãe de chuvas.
E num esfregar de olhos, limpamos de nós
os restos. Descascamos o dia que se encerrou
em arca de madeira escura, que dura
há gerações no mesmo local. Somos
a pedra que se faz calçada e dá passagem
aos que, apressados passam. Para onde vão,
apressados, para onde?

Num salto repentino do leito quente
de olhar límpido e lavado do ontem,
como se os inícios fossem dias,
como se o passar dos dias fossem inícios
de algo mais que uma claridade
 que nos inunda, a que chamamos manhã.
E as manhãs são pedaços de horas
que passam ao lado do olhar fixo
interdito aos despojados da sorte de ver
ainda que com buracos no sítio de olhos
ainda que com uma cegueira infinita
das cores e das formas, mas fixo,
o olhar, que da noite herdou a lentidão
do reflexo. A manhã do despertar
de olhos aflitos, de músculos tolhidos
por um esticão de trovoadas
Um grito abafado e solitário
 que as mãos acompanham no gesto,
na dor, o sabor acre do sol que
viola as frestas das fitas velhas
que tapam as janelas. E as teias
onde as pequenas aranhas se acostumaram
também a amanhecer, parecem
uma rede de avenidas de uma metrópole
deserta, ou melhor, de um único passageiro.
De uma única via, de sentido
também ele único. Com presas nocturnas.

Choveu. Foi mãe a noite.
E a chuva é como todos os objectos
De tortura e prazer. É uma franja
de tiras de couro a fustigar de frio
as peles e as roupas, na manhã
onde despojados dos restos de outros dias
cuidamos renascer e apenas
revivemos desejos miméticos.

O espelho ignora a teia, ignora a aranha
ignora os raios de sol que entram
pela janela, ignora a janela,
ignora as fitas velhas imundas
que há anos tentam esconder luz do dia
nas manhãs consecutivas de despertares.
Ignora-me a mim. Ignora a inocência
do crer que existe um espelho
ou qualquer outro cenário.
Ignora qualquer cenário e termina
por ignorar o dia, fechando-o
na arca de madeira escura, que dura
há gerações no mesmo local.

 

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