quarta-feira, 17 de julho de 2013

Pântano

os pés sobre a laje: diáfana.
o coaxar metálico sem sopro
em cima de um nenúfar.

um balido apagado pela distância,
e um muro. possível de ser
transposto,

tem a altura de meio homem.
meia altura, meio muro,
que amortece em si os sons
da natureza. e dos aviões.

sacodem-se, aflitos os canos
oxidados onde se depositaram
musgos e cresceram tantas
criaturas vivas,
daquelas que apenas
se podem observar com o auxílio
de instrumentos. e de vontade.

dos azulejos, um azul forte
invadido por um verdejante
aveludado material sombrio.
requisita o sol para a síntese
do orgasmo respirável.

na transposição das cores
caem uns quantos, abertos,
gretados pela força das raízes
e do seu abraço às trepadeiras.

a civilização é um oásis
para lá do meio muro distante.
uma rotina na ideia concreta
que se desfez ao longo de décadas.
um barco à deriva.

os pés já não vão a medo
transpondo o que se pode ver.
pior é o caminho oculto,
aquele que está para além
dos escombros de tudo quanto
julgámos haver construído.
pior, é sabermos que
todas as construções
não passam de vãos caminhos
e que, num esgar manifesto
ao tempo, e ignorado,
sempre ignorado, damos passos
em falso. e o piso sólido: betão.
nada mais que pântano.

no tempo das amoras silvestres

no tempo das amoras e das silvas, os caminhos feitos pedra tosca onde a vida havia parado há anos. os muros, pilhas de vidas, amontoadas como o desprezo que foram tendo por si mesmas. foi um tempo austero de cultivos para passar a fronteira. de pouco valia, tal como o que agora vale, o suor a gotejar na derme seca e encrostada a imitar torrões. de pouco valia a palavra dada em surdina. o grito havia de ser unânime. um só grito de uma só dor. o sol nesses tempos tão severo quanto o gelo. tão lento a fustigar quanto uma tortura dos homens fardados de tinto e doutrina severa. o fogo era coisa de durar pouco. o fogo na palha da carroça de bois. o fogo nas coxas das mulheres esquecidas nas horas de serem gente. qual não. nada era não porque a pedra e o crucifixo violentavam entre as pernas frouxas num palheiro nos fundos do lameiro. o pai via e cantava. o avô via e chorava a memória de outros tempos em que também ele jorrava virilidades. ao dobrar dos sinos a correria em flanela rota e cheiro aos buracos, como se deus os fosse preencher de misericórdia. a escola ao fundo do espaço ensinava as coisas de importância. como se chamavam os rios, as pontes, as serras, os reis. como se chamavam os chefes. e como se soletrava a palavra silêncio, de palmatória. a mercearia dos homens ricos, os únicos homens ricos de uma terra de muitas fomes onde as criadas eram mesmo de servir. e um dia o filho do homem rico a morrer de gás como um judeu condenado foi salvo em correria e gritos. um dia continuou, afinal, o seu crescimento. não o tombou a mistura tóxica que se desfez em despertar abrupto. a criada de servir. amoras silvestres e espinhos na garganta. cresceu e fez-se homem igual a todos os homens e tomou quantos corpos quis. faltava muito para o amanhecer e a água gelada sobre no rosto despertava de um sono e ajudava manter o outro. silêncio. silêncio e amoras silvestres. contavam-se coisas sobre os fetos jogados ao rio. as barrigas que nunca cresciam e os corpos que nunca rasgavam de dentro para fora outros corpos. era sempre inverno, ainda que o sol, tão severo quanto o gelo. era inverno e as pancadas violentas nas portas de madrugada a fazerem eco sobre o mundo. e, no entanto: silêncio. os fetos sobre a água e as algemas a comprimir a magreza. o filho do homem rico não morreu, e mil filhos a flutuarem nas águas tranquilas de um rio. silêncio. as prisões a abarrotarem de subversão e de mulheres vazias. as pobres haviam de parir pobres para servir ricos. a palha amortecia tantos corpos nos palheiros ao fundo dos lameiros e era tempo de silêncio. era tempo de grito unânime. era tempo de amoras silvestres, negras como as sortes de todos os tempos naquele espaço em que alguns sabiam de cor como se chamavam os rios, as pontes, as serras, os reis. como se chamavam os chefes. e como se soletrava a palavra silêncio, de palmatória.

nós

quando nos pedem que sejamos transparências:
nós de sonhos turvos;
nós de alma turva;
nós de palavras indecifráveis;
nós de destinos entrelaçados,
anarquicamente emaranhados
em nós;
nós, opacos, e cada vez mais,
nós, menos nós.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Saudade

num vôo quase caleidoscópico, tenho a sensação de rever-te
e não estás: matéria, despida e iluminada matéria.

como o poder químico dos holofotes, a fórmula final
dos hipnóticos, és o derradeiro sonho.

a viagem escura e guiada aos limites de mim mesmo
em paredes brancas acolchoadas.

os botões grandes e suspensos e o som abafado de um grito
desgrenhado que se encosta à parede e dorme.

vejo-te em tons de dia anterior. numa mistura lúcida
de querer e não saber querer.

comes o diabo amassado em pão, e eu aqui: distante
do teu infortúnio, penso rever-te.

eu, acabado nos dias, gotejado num chão branco,
numa cegueira múltipla.

e não estás senão num cinzeiro vazio com cheiro a mágoas
vertidas no que podias ter sido: fumo denso.

e não te encontras senão na cinza que se fez do tempo
regado de um líquido com nome estranho

que se entranhou em mim como uma sombra no chão
sem pedir caminho ou permissão.

e não estás para além da memória de pele na pele
que ficou atrás de num vulto perdido

de dois, da soma que ousaste fazer quanto todo o tempo
era de divisão. células apartadas.

fizeste de todas as partidas, uma única chegada
mas a outro sítio que não este.

tenho a sensação de rever-te mas estás apenas
no meu delírio mecânico,

numa vertigem espasmódica que ensaio em
convulsões de saudade.