segunda-feira, 19 de agosto de 2013

camilo: um homem livre

o homem livre chora porque quer ser ainda mais livre. viver naquela liberdade funda, bem funda no conceito que lhe rasga a garganta a cada palavra de ordem gritada bem alto. bem alto para que se projecte a voz nos edifícios antigos da cidade. mas o choro é grito aflito de ódio disfarçado de moral. um ódio que engasga a cada passo. e de quando em quando um gole de cerveja que escorrega como uma revolução no estômago. uma síntese entre o pensamento e a necessidade da alavancagem química da ideia. e que bela ideia essa utopia que entope as artérias de raiva. o homem livre que quer ser mais livre, sabe bem que nunca foi livre. sabe mais do que isso. nunca foi homem. sabe para lá de tudo. nunca lhe foi permitido pensar para além da liberdade. e que mais querer que ser livre numa terra de gente livre. o que querer mais que uma vida recheada de vozearia e braço no ar em busca de algo que deveria ser o acrescento de liberdade à liberdade que está projectada como antítese da possibilidade na sua vida. a palavra de ordem ecoa nos velhos edifícios à mesma velocidade da construção do mundo. e, no entanto, ele destrói-se.

ao descer a avenida, camilo tropeça nas suas próprias ideias a borbulhar,

talvez um dia esta merda ande. mas reunimos ontem. reunimos hoje. amanhã. os dias que forem necessários. o mundo acordará de um pesadelo... ninguém trouxe o feijão, foda-se. nada se consegue organizar sem organização, entendem?

mas não seria suposto não termos qualquer organização. não tens feijões come lixo. não tens lixo... a sociedade recolhe até os seus restos. por vergonha. é uma sociedade com vergonha até dos seus próprios restos. cada um que faça o que entender. não somos livres e tu sabes disso. e de tanto saber queres organizar outra forma de prisão?

camilo regressa à palavra de ordem. a palavra contra o sistema. e o sistema, seja lá o que isso for, pariu camilo naquela mesma rua há vinte cinco anos atrás quando a sua mãe, sem dores nem sinal, lhe deu ganas de fugir do mundo. mas o que tinha era um pequeno mundo a querer escapar ao seu universo húmido por entre as pernas. camilo nasceu a berrar palavras de ordem no meio da rua com a assistência da senhora que passava e que tinha na vida o ofício clandestino de cortar as vidas, ou os males das vidas, pela raiz da existência.

já está cá fora. nunca se viu tamanha vontade de sair ao mundo. e como berra. será livre. tão livre como todos os de caxias ainda há pouco no tempo. o sangue lambe a pedra da calçada. maria pegou no nascituro camilo pelas pernas e deixou-lhe vermelhas as nádegas. já havia chorado, mas aquela, disse a senhora, era por tudo quanto havia de vir.

ninguém trouxe feijão. eu disse: feijão. parece que querem mudar o mundo sem feijão. sem voz. sem palavra de ordem. não queremos quem nos comande. queremos quem nos dê feijão em troco de uma moral. percebes, foda-se?

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