segunda-feira, 19 de agosto de 2013

dormir no bico de um pássaro morto

fetiche. quero e desespero. acendo cigarro.
não fumo. desisto de procurar no fundo do poço,
a virtude. o entrelaçar de dedos. paciência.
os passos são dados sobre os taipais das obras
em torno das quais chovem pássaros de todas as cores
e cantam uma melodia disparatada.

a tarde cai sem pressas e não abona
em favor da imagem projectada
nos espelhos que são janelas de edifícios altos.
como os saltos. como as pernas. como a voz que
do outro lado do mundo adivinha o passo.
não é culpa. a culpa é um dos pássaros cantantes
morto depois de rodopiar e embater contra o seu
próprio reflexo. o pássaro está morto. finalmente solto.

as obras foram esquecidas. cheiram ao esquecimento.
a todos os tipos de esquecimento. como se esquecem
corpos velhos enrugados em torno dos quais
nem os abutres soltam gritos de matar fomes.
os pássaros como que ensaiam uma melodia funesta
e disparam sortes que trazem nos bicos.
os saltos altos e o cigarro apagado. não fumo.
desço ao fundo do espaço e sou vestido de lábios
antes de pensar porque terão interrompidos as obras
porque cantarão ainda os pássaros e consigo ouvir
daqui. como crianças que choram. não gosto de crianças.
as crianças choram, não cantam nem sequer
as marchas fúnebres dos corvos desafinados.

[a noite que nos inundava, e os berros lancinantes
um queixume de constâncias e a fome.
os seios de outra boca. e o silêncio que não há.
quero ler. quero ler em silêncio. quero o regresso
do tempo em que o corpo era o meu único altar.
a multiplicação de lágrimas indecifráveis.
maléficas. um redemoinho de cinismo
de pernas e braços tão pequenos. um choro constante.

a fuga. o único altar que se desfaz
quero e não posso comer. comer-te
no silêncio da noite. no teu próprio grito.
quero ler e reler as formas de todas as frases
de todos os livros que me enganaram de forma vil.
o choro é uma merda. quero comer. quero dormir.
como dormir se há meses o sono é sonho acordado.
como dormir se não me lembro de estar dentro de ti.
quero foder-te como se o mundo fosse despido de
crianças. como se fossem todos nados mortos
e o meu mundo feito de saltos altos
dentro de ti em todas as manhãs]

num esgar habitual, trejeito genético
expulso os pássaros num gemido só, bem alto
da cave húmida, dentro de outra cave húmida.
não sei porque terão abandonado as obras.
tal como eu, cheiram a esquecimento
e pagam pela liberdade num canto oculto qualquer.
fetiche. as escadas subidas devolvem-me a luz
aos olhos cansados. será desta que irei dormir
ainda que no bico de um pássaro morto.

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